Os oprimidos, proibidos de ser, só libertam-se em comunhão, sempre ensinou o educador pernambucano que em 2021 comemora seu centenário de nascimento. A condição prévia para esta libertação ocorra é que os oprimidos possam unir-se, por mais diversos que sejam, cessando de criar uma “hierarquia entre as opressões”, como dirá Audre Lorde, para perceberem-se solidários, diversos mas não dispersos. Em prol da superação daquilo que os separa, no rumo do encontro, através da solidariedade revoltada, de uma justa ira que os irmane como co-construtores de um outro mundo comum.
Um mundo inédito, inaudito, que não é sonho impossível, mas utopia palpável, factível, de realização viável (mas apenas à nossa força conjunta, nunca à iniciativa isolada de um indivíduo atomizado). A esta construção de uma força dos oprimidos unidos Paulo Freire chamava “unidade na diversidade”, conceito que marca presença nos Gundrisse de Marx e que n’A Pedagogia da Esperança assim se expressa:
“A unidade na diversidade tem de ser a eficaz resposta dos interditados, proibidos de ser, à velha regra dos poderosos: dividir para reinar.” Paulo Freire. Pedagogia Da Esperança, p. 208
“Estou convencido de que quanto mais as chamadas minorias se assumam como tais e se fechem umas às outras, tanto melhor dorme a única e real minoria, a classe dominante. (…) As chamadas minorias precisam reconhecer que, no fundo, elas são a maioria.
O caminho para assumirem-se como maioria está em trabalhar as semelhanças entre si, e não só as diferenças, e, assim, criar a unidade na diversidade fora da qual não vejo como aperfeiçoar-se e até como construir-se uma democracia substantiva, radical.” Paulo Freire. Pedagogia Da Esperança, p. 212
O Tsunami da Educação, em 2019, foi um levante histórico no Brasil contemporâneo também pois propôs esta unidade na diversidade de maneira altissonante, ou melhor, ruidosa e polifônica como uma inédita balbúrdia que educa. Esta potência das ruas e das redes quando não são apenas caixas-de-ressonância para a doutrina de seitas, para o credo de bolhas, indica um caminho fértil para nossas lutas sócio-políticas transformadoras: a balbúrdia pode ensinar, é fato, desde que ela seja pluridiversa, acolhedora de todas as cores e destruidora de todos os binarismos redutores.
Na calada da noite
Os estudantes fazem
O futuro amanhecer
Quem aprendeu a ler e escrever
Sabe bem que analfabeto
Jamais voltará a ser
Mesmo que o destino
Reserve um presidente adoecido
E sem amor
A juventude sonha sem pudor
Flor da idade, muito hormônio
Não se curva ao opressor
Pode apostar
A rebeldia do aluno é santa
Não senta na apatia da injustiça
Agita e inferniza e a rua avança
Escola não tem medo de polícia
Pode apostar
Balbúrdia de aluno é o que educa
Ensina o governante que caduca
Retroceder não é uma opção
Respeito é pra quem dá educação
Respeito é pra quem dá educação
Respeito é pra quem dá educação
A Pedagogia do Oprimido propõe uma práxis cultural-educativa que visa não apenas promover, nos oprimidos (também referidos por Paulo Freire como “os esfarrapados”, os “interditados de ser”, os “pisoteados” pela opressão…), a transformação que os leva da ingenuidade à criticidade, promovendo neste movimento a ascensão, do pântano do imobilismo fatalismo rumo ao céu viável e com asas demasiado humanas da ação conjunta transformadora do mundo comum. Mas, para isto, a “unidade na diversidade” precisa constituir-se como força dos oprimidos no processo de partejar um outro mundo possível onde os próprios opressores teriam sido radicalmente re-educados.
Em dos trechos mais fortes da Pedagogia da Esperança, comentando sobre suas vivências em El Salvador, Paulo Freire tenta pensar nos melhores modos
“do povo se afirmar, de ganhar voz, presença, na reinvenção de sua sociedade, diminuir injustiças, (…) ir consolidando um modo de ser democrático de que resulte, inclusive, o aprendizado, por parte dos acostumados com tudo poder, de que muito do que lhes parece uma ameaça a seus privilégios, entendidos por eles, obviamente, como direitos inalienáveis, é apenas a efetivação de direitos por parte de quem vinha sendo proibido de exercê-los” (p. 268).
Em outras palavras, o todo-poderosismo das velhas elites autoritárias, herdeiras do sistema escravocrata colonial, hoje manifesto no desgoverno militar de Bolsonaro & Mourão, só virá abaixo caso uma força dos de baixo possa produzir materialmente uma vasta campanha concreta de re-educação que leve aprendizados radicais também aos que hoje oprimem.
A Elite do Atraso de que fala Jessé Souza têm horror à ideia de perder privilégios, mas pouco se ocupa de perguntar se tais privilégios não são injustiças que perpetuam uma desigualdade que nos fratura, e que é um malefício para todas as classes, inclusive para as possidentes, obrigadas ao bunker, ao arame farpado e aos condomínios blindados devido à violência que a injustiça social inevitavelmente produz.
Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, são intelectuais que incomodam pois souberam confrontar as elites mandonas com argumentos fortes e alta oratória – com radicalidade, Freire diz que “os acostumados com tudo poder” precisam aprender umas liçõeszinhas: “o aprendizado de que seus privilégios, como o de explorar os fracos, o de interditá-los de ser, o de negar-lhes a esperança, são imorais e, como tais, precisam de ser extirpados. O aprendizado, por outro lado, por parte dos esmagados e das esmagadas, dos impedidos de ser, dos renegados, de que é possível, pela luta séria, justa, decidida, incansável, refazer o mundo. De que a esperança tem sentido se é partejada na inquietação criadora do combate.” (p. 269)
A Casa de Vidro deseja a todos um bom esperançar conjunto em tempos de barbárie, e uma boa luta repleta da “inquietação criadora” que nos inflama em meio à infindável luta…
Em 2021, Paulo Freire completaria 100 anos de idade. É tempo de relembrar sua história, seu pensamento e suas propostas político-pedagógicas, cuja força ainda mobiliza milhares de educadores – e incomoda os poderosos. Por isso, a Universidade Emancipa e a Universidade Federal do ABC (UFABC) organizaram o curso de extensão “100 anos de Paulo Freire: esperançar em tempos de barbárie”.
Em agosto e setembro de 2021, às quintas-feiras, sempre das 19:00 às 20:40 (hora de Brasília). São oito encontros no canal da Rede Emancipa do Youtube.
Datas: 5, 12, 19, 26 de agosto + 2, 9, 16, 23 de setembro de 2021
SAIBA MAIS _ ACESSE ____ https://emancipapaulofreire.wordpress.com/
Publicado em: 04/08/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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